“A gestão democrática na educação é fundamental para o fortalecimento da democracia”
Para comentar o direito à educação e suas relações com a democracia e o exercício da cidadania, convidamos a uma conversa o deputado brasileiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Ivan Valente.
25 de agosto de 2016
Por Fabíola Munhoz, da CLADE
Foto: Arriba las que luchan
Em seu quinto mandato como deputado federal pelo estado de São Paulo, Valente é titular das Comissões de Relações Exteriores e de Educação no Congresso Nacional, além de integrar a Comissão Especial do Plano Nacional de Educação. Tem sido um dos parlamentares mais ativos na luta pela destinação de 10% do PIB brasileiro para a educação. Em 1997, encabeçou a apresentação ao Congresso do Plano Nacional de Educação, que foi elaborado com ampla participação de educadoras/es e defensoras/es desse direito no país.
“Um dos princípios constitucionais da educação pública brasileira é o princípio da gestão democrática. Isso significa que nas políticas públicas para a educação, a participação popular, sobretudo dos sujeitos da comunidade educacional, deveria estar presente. Na formulação, no aperfeiçoamento e na implementação das políticas, o envolvimento desses sujeitos é fundamental. Apesar disso, o que vemos é o inverso: políticas formuladas de cima para baixo, sem consulta aos envolvidos, porém com a responsabilização dos professores ou dos alunos pelo sucesso ou não da política educacional. Inverter essa lógica seria fundamental para a organização da gestão democrática na educação, e consequentemente, para o fortalecimento da democracia”.
Leia a seguir a entrevista completa.
Qual é, em sua opinião, o papel da educação para a formação da cidadania e a realização dos direitos humanos?
Ivan Valente - A educação é condição básica para a construção de uma sociedade justa e que se atente à realização dos direitos humanos para todos. Ela tem o papel de formar cidadãos e cidadãs capazes não só de atuar, mas também de transformar a realidade em que estão inseridos. O fim das desigualdades e das opressões exige uma educação de qualidade para todos, voltada para o desenvolvimento humano e social.
Sabemos que o exercício da cidadania vai além do processo eleitoral, e se realiza plenamente por meio da participação popular direta e pela atuação dos movimentos sociais. Poderia nos comentar a respeito, por favor?
Exato. Exercer a cidadania envolve participar da política, das instâncias de decisão e participação, acompanhar os processos legislativos, pressionar, cobrar e reivindicar direitos, se organizar. Os movimentos sociais são fundamentais para impulsionar políticas e ganhos de direitos, bem como resistir aos ataques que hoje se apresentam diariamente aos trabalhadores, às mulheres e às classes desfavorecidas.
De que maneira a não discriminação e a convivência pacífica podem impactar o exercício da cidadania e o fortalecimento das democracias?
Para haver de fato a democracia é preciso o reconhecimento do outro enquanto sujeito. As ameaças ao exercício da cidadania e à democracia partem via de regra daqueles que não conseguem reconhecer a legitimidade dos direitos do outro tanto quanto a dos seus. A intolerância, o ódio e preconceitos, sobretudo o preconceito de classe, foram elementos centrais no golpe à democracia que o Brasil está passando, por exemplo. Lutar contra isso é fundamental.
Como o poder legislativo pode e deve atuar para fortalecer a participação cidadã e envolver a população nos processos decisórios sobre as políticas públicas?
Um mandato popular deve estar conectado com as pautas dos movimentos sociais, das ruas, do povo. Nosso mandato está sempre nas ruas, nos movimentos sociais, em contato com a população, sem medo de se expor e colocar os debates em pauta. Não ter rabo preso com empresas (que financiam as campanhas eleitorais e são centrais na corrupção do país) nos permite estar comprometidos com as pautas dos movimentos sociais, com as pautas dos trabalhadores. Utilizar os canais de comunicação existentes, como as redes sociais, para tratar das grandes questões políticas do país também tem se mostrado um poderoso instrumento de comunicação entre a atuação do parlamentar e a sociedade. A luta pela reforma política também é fundamental. Nossa democracia deve ser participativa, e não somente representativa. Essa batalha pela democratização do Estado deve ser feita nas ruas e no legislativo, com projetos de leis que atendam a essa demanda.
Podemos dizer que a cidadania é um processo educacional e de aprendizado constante?
Cidadania não é um ato que se exerce pontualmente. É algo que se aprende, na prática, na participação, na ação, na reflexão e na vida coletiva.
De que maneira as políticas públicas educativas podem favorecer o exercício da cidadania e o fortalecimento da democracia?
Veja, um dos princípios constitucionais da educação pública brasileira é o princípio da gestão democrática. Isso significa que nas políticas públicas para a educação, a participação popular, sobretudo dos sujeitos da comunidade educacional, deveria estar presente. Na formulação, no aperfeiçoamento e na implementação das políticas, o envolvimento desses sujeitos é fundamental. Apesar disso, o que vemos é o inverso: políticas formuladas de cima para baixo, sem consulta aos envolvidos, porém com a responsabilização dos professores ou dos alunos pelo sucesso ou não da política educacional. Inverter essa lógica seria fundamental para a organização da gestão democrática na educação, e consequentemente, para o fortalecimento da democracia.
Em sua opinião, como podemos garantir que a pluralidade de ideias e o acolhimento da diversidade sejam observados nos debates legislativos e também no interior das escolas e universidades?
Tem havido uma crescente onda conservadora no nosso país, que condena a liberdade de expressão, a diversidade e a pluralidade de ideias. No legislativo, vemos isso com a recente reforma eleitoral, que simplesmente “se vingou” de partidos pequenos, mas programáticos, como o PSOL, que ousou fazer a luta contra a corrupção e contra o conservadorismo no congresso, retirando nosso direito de participação nos debates das eleições municipais e restringindo de forma absurda, por exemplo, nosso tempo para expor nossas ideias na televisão, durante a campanha eleitoral. Nas escolas, não está diferente. O avanço do projeto “Escola Sem Partido” [em linhas gerais, proíbe que docentes de escolas públicas expressem suas opiniões durante as aulas, com o objetivo de “garantir a ‘neutralidade’ política, ideológica e religiosa no âmbito educativo”] é um exemplo de que querem acabar de qualquer forma com vozes que debatam e possibilitem a formação do pensamento crítico, questionador. Certamente uma reforma política é necessária em nosso país, sobretudo para acabar com o fisiologismo, com o financiamento privado de campanha, para o fortalecimento dos partidos programáticos, que têm um projeto de país a ser debatido. Além disso, é fundamental defender os avanços conquistados e até então dispostos na nossa Constituição Federal, rechaçando projetos como o “Escola Sem Partido”.
Poderia nos comentar, por favor, os principais impactos das novas tecnologias e da globalização de lutas e movimentos sociais, a partir especialmente das redes sociais, na construção da cidadania?
As redes sociais têm mostrado um imenso potencial, especialmente para vozes distoantes do pensamento dominante na sociedade capitalista. A gigantesca concentração dos meios de comunicação de massa acaba concentrando um único modelo e pensamento vigente, que corroboram para a manutenção das coisas como estão. Acabamos de passar pela construção de um golpe no país, que foi amparado, apoiado e sustentado pela grande mídia. Isso não é pouca coisa. A internet e as redes sociais têm tido o poder de ser uma opção como fonte de informação, formulação, comunicação, convocação e envolvimento da militância. São novas formas que se incorporam no cotidiano das pessoas e no cotidiano das lutas.
A Agenda de Desenvolvimento 2030 adotada pelos Estados membros da ONU, entre eles o Brasil, determina a realização de uma educação inclusiva, equitativa e de qualidade para todas e todos até 2030. Na sua opinião, quais os principais desafios para o cumprimento desse compromisso no contexto brasileiro?
O contexto brasileiro é muito preocupante. Estamos discutindo no Congresso Nacional, não mais o percentual do PIB a ser destinado à educação, como fazemos desde 1998, quando apresentei o primeiro Projeto de Plano Nacional de Educação, destacando a importância do financiamento público para a escola pública de qualidade. Estamos num momento em que se discute a retirada de direitos, a retirada da vinculação obrigatória de verbas para saúde e educação, o congelamento dos gastos nas áreas sociais durante 20 anos. Se aprovado esse pacote de retrocessos, nunca o país avançará em direção da educação inclusiva e equitativa e de qualidade para todos até 2030. Pelo contrário, retrocederemos no acesso e na permanência da educação pública de qualidade. Haja vista o Plano Nacional de Educação, aprovado há dois anos, com problemas, mas que tem se mostrado letra morta. Hoje, garantir a ampliação dos recursos para a educação e lutar contra a mercantilização do ensino são os nossos maiores desafios.