“Nossa agenda será a luta pela consagração do direito humano à educação pública, laica, gratuita e de qualidade”
O governo brasileiro iniciou nova gestão sob o lema ‘Pátria Educadora’. Ao mesmo tempo, anunciou cortes nos investimentos públicos em educação. Em entrevista, Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional, do Brasil, comenta a complexa conjuntura da educação no país. Entre os desafios, afirma que será preciso enfrentar o discurso do financiamento por resultado, baseado nas métricas e avaliações internacionais de aprendizagem
4 de julho de 2015
Foto: Juliane Cintra/Ação Educativa
Apesar de ter iniciado o segundo mandato sob o lema "Pátria Educadora" em janeiro de 2015, a presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, autorizou cortes nos investimentos públicos em educação de 9,4 bilhões de reais só neste ano, em decorrência do ajuste fiscal anunciado no mês passado em resposta à alardeada crise econômica que o país enfrenta. Logo depois desse recorte, o governo federal lançou a proposta “Pátria Educadora”, documento elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, em desacordo a muitas das principais conquistas da sociedade civil refletidas no Plano Nacional de Educação (PNE), que já completa um ano de sua aprovação e se baseia em bandeiras universalistas e de democratização de direitos. Para muitos educadoras/es e ativistas, esse novo programa expressa uma visão meritocrática da educação, defendendo, entre outros pontos, processos de avaliação de aprendizagem padronizados e intervenção nas escolas que não apresentem bons resultados.
Assim como no cenário internacional, nota-se como um elemento especialmente desafiador para quem luta pela realização desse direito, o acirrado embate entre os setores público e privado pela definição dos conceitos de qualidade e financiamento da educação que deverão ser expressos e assegurados na nova agenda de educação. Para debater esse complexo cenário, convidamos Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação no Brasil. Na entrevista, ele comenta quais serão as principais bandeiras de luta da sociedade civil brasileira neste e nos próximos anos, identificando desafios comuns para a incidência pelo direito humano à educação nos níveis regional e internacional. “A disputa entre o público e o privado no nível internacional já tem características nativas que vamos ter que enfrentar. Faremos uso dos instrumentos de direitos humanos internacionais para dizer que esse é um caminho equivocado, sem nunca prescindir da luta nacional, que é a mais imediata e decisiva”, afirma.
A presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, anunciou que o slogan “Brasil, Pátria Educadora” seria o carro chefe de sua gestão. No entanto, no mês passado, o governo federal reduziu os investimentos públicos nessa área. Quais os principais impactos dessa decisão?
É uma enorme contradição. O ajuste fiscal em voga, sob o argumento de aumentar a capacidade do país de pagar a sua dívida pública, é decorrente de um erro de interpretação, pois deve economizar entre 16 e 18 bilhões de reais por ano, prejudicando gravemente a população, piorando as condições de vida, especialmente dos mais pobres. Além disso, impede a realização do PNE e de outras políticas públicas estruturantes. Enquanto isso, a taxa de juros brasileira continua alta e tem sido aumentada pelo Banco Central. E é ela que realmente impacta a dívida pública brasileira, além de travar a economia. A cada ponto percentual aumentado na taxa de juros brasileira, somam-se 8 bilhões de reais a mais na dívida pública. Esse ajuste fiscal não chega nem a ser um jogo de soma zero. Os juros subiram mais de dois pontos percentuais em 2015. Ou seja, os R$ 16 ou R$ 18 bilhões a serem economizados com o ajuste foram gastos com os R$ 18 bilhões da dívida pública adicionados pelos aumentos recentes das taxas de juros. Nós, da Campanha Nacional, defendemos que a população prejudicada por esses ajustes é a que mais demanda políticas públicas e, portanto, deveria ter a realização de seus direitos priorizada por qualquer governo que cumpra a Constituição Federal. Portanto, somos contrários aos ajustes de Dilma. Inclusive, acreditamos que um governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores (PT) deve refletir sobre o seu papel na sociedade brasileira, deve ser coerente. Aliás, se dependesse de algumas lideranças do PT e, principalmente, da base do partido, certamente, o caminho não seria o do ajuste fiscal. O Governo Dilma está indo para o rumo errado.
Qual o posicionamento da Campanha Nacional em relação ao conteúdo do documento “Pátria Educadora”, proposto pela Secretaria Nacional de Assuntos Estratégicos?
O compromisso do governo federal com o PNE é falho. Antes de sua aprovação, a presidenta Dilma agiu o quanto pôde para vetar temas que eram caros à sociedade civil brasileira, especialmente o CAQ (Custo Aluno Qualidade) e o CAQi (Custo Aluno Qualidade-Inicial), que são propostas da Campanha Nacional para o financiamento público do direito à educação com qualidade. Negociamos muito com a presidência para que essas propostas não fossem vetadas. Durante toda sua campanha eleitoral, Dilma ressaltou o PNE, ainda que sem nenhum compromisso efetivo, e, no dia 1º de janeiro, lançou o slogan “Pátria educadora”. Para a Campanha, esse slogan deveria significar o cumprimento dos primeiros quatro anos do Plano Nacional de Educação. Porém, o prazo para o cumprimento da primeira meta do PNE, que é a formação dos profissionais da educação, se encerra no dia 24 de junho de 2015, e isso praticamente não caminhou, embora demande mais articulação entre entes federativos, pesquisadores, faculdades de educação e licenciaturas, do que propriamente recursos financeiros.
Por outro lado, o conceito de “Pátria Educadora”, foi ocupado pelo Mangabeira Unger [Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência], que é um professor da Universidade de Harvard com pensamento estruturalista refinado, mas fundamentado em uma visão elitista da sociedade, segundo a qual é preciso mobilizar as elites para que deem resposta às necessidades e aos desafios dos países. Nós somos mais pluralistas e plebeístas. Queremos a inclusão plena de todos, em um programa construído democraticamente. O PNE é isso.
O documento Pátria Educadora dialoga com o Plano Nacional de Educação?
O documento dialoga com o PNE, mas subordina agendas universalistas a agendas meritocráticas, pautadas numa reforma de base empresarial da educação. Ou seja, submete a razão pedagógica à razão mercantil. No entanto, os benefícios que alcançamos até hoje para a educação nacional estão baseados na agenda de democratização e universalização de direitos. Em grande parte, graças ao trabalho da sociedade civil, o Brasil avançou muito em termos de expansão das oportunidades educacionais, mas ainda tem o desafio de melhorar a qualidade, o que exige financiamento. Esse ponto não é enfrentado pelo documento “Pátria Educadora”, porque é dolorido para o governo federal. É sempre bom lembrar que o governo foi contra a luta pelos 10% do PIB para a educação pública, mas foi vencido pela força social que se estabeleceu em torno a essa bandeira de luta, pautada fortemente em argumentos técnicos, sempre mais aprimorados do que os do Governo Federal.
Quais serão os principais desafios da incidência pelo direito humano no Brasil neste e nos próximos anos?
O cenário no país vai ser de luta social e não de aliança estratégica com o governo, sequer aliança pontual, a não ser que haja um improvável acordo programático e um efetivo compromisso político e orçamentário com os direitos sociais. Embora seja composto por uma coalizão formal de centro-esquerda, o governo Dilma está distante de responder às atuais necessidades da população brasileira, e não podemos abrir mão de criticar a maneira como se tem gerido o país. Da forma como foi elaborado, o ajuste fiscal é uma demanda do mercado financeiro, não chega nem a ser da economia brasileira, pois a indústria está extremamente prejudicada. Acreditamos que governos se mobilizam apenas pela pressão social. Então, nossa agenda será de reafirmação do PNE e de luta pela consagração do direito humano à educação pública, laica, gratuita e de qualidade. Não vemos a disposição do governo brasileiro em cumprir totalmente esta agenda, mas acreditamos que ela é fundamental, e é o que justifica nossa existência como Campanha. E não vamos abrir mão disso.
Podemos dizer que no Brasil, assim como em nossa região e no mundo, duas questões desafiadoras para a incidência pelo direito à educação no pós-2015 serão a qualidade e o financiamento da educação, como conceitos em disputa entre os poderes público e privado?
O Brasil tem processos autóctones que determinam uma agenda privatista independente do nível internacional. Porém, como parte da CLADE e da Campanha Mundial pela Educação, tivemos uma forte capacidade de resistência e proposição no Foro Mundial sobre Educação em Incheon, Coreia, que vai nos permitir utilizar a estratégia do constrangimento do governo brasileiro. Isso é importante, pois, apesar de mais avançadas que a Declaração de Incheon, as leis brasileiras ainda estão muito distantes de serem cumpridas. Em relação ao público e ao privado, a disputa no nível internacional já tem características nativas que vamos ter que enfrentar. Faremos uso dos instrumentos de direitos humanos internacionais para dizer que esse é um caminho equivocado. No nível regional, precisamos de mais solidariedade e união entre nossas lutas. Por exemplo, o Brasil deveria, em conjunto com o Chile, criar alternativas de resistência à privatização da educação. Acreditamos que o financiamento deve ser um valor em si para a garantia de uma educação pública e de qualidade.
Além disso, temos que enfrentar o discurso do financiamento por resultado, baseado nas métricas e avaliações internacionais, pois isso não garante a solução dos problemas da educação. Nesse sentido, temos que enfrentar o debate de temas como a questão curricular e retomar a aprendizagem como uma agenda nossa, do nosso campo. A sociedade civil deve dizer que aprendizagem deve ser garantida para nossas/os estudantes, pois ela é objetivo fundamental do direito humano à educação, mas sempre lembrando que ela não se realiza sem o ensino. Do contrário, daremos aos adversários as condições de fazer o programa que quiserem e pautar a qualidade da educação, pois parece que só eles falam sobre aprendizagem. O PNE determina agenda para tudo isso, articulando ensino e aprendizagem, mas nem sempre expressando nossa visão política e pedagógica. Isso faz parte e o jogo ainda está aberto. Teremos a chance de brigar por esses temas, defendendo e construindo nossa perspectiva.
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