"Para ser inclusiva a escola deve abandonar práticas pedagógicas rígidas e homogeneizantes"
Nesta entrevista, a diretora de políticas de educação especial do Ministério da Educação, do Brasil, Martinha Santos comenta as ações para promoção da educação inclusiva no país e defende que as escolas se transformem para acolher as diferenças e promover o protagonismo dos/as estudantes
4 de junio de 2016
Desde el OREI
Por Fabiana Vezzali
Em 2015, 81% das matrículas de pessoas com deficiência registradas no Brasil foram realizadas no ensino público. Esse dado demonstra uma tendência de fortalecimento da inclusão no sistema público, uma vez que, em 2003, quase metade das matrículas dos/as estudantes com deficiência estavam no setor privado.
Para conhecer as políticas de educação inclusiva implementadas no país e os desafios para enfrentar a discriminação contra pessoas com deficiência, o OREI entrevistou Martinha Clarete Dutra dos Santos, diretora de políticas de educação especial do Ministério da Educação. "O ponto principal da implantação da política inclusiva no Brasil foi justamente garantir o financiamento público à educação pública", destaca.
De acordo com o Ministério da Educação, o número de alunos/as com deficiência matriculados/as em escolas regulares aumentou de 145 mil, em 2003, para mais de 750 mil em 2015, enquanto o número de matriculados/as em classes ou escolas especiais diminuiu no mesmo período. A maioria das matrículas (73%) pertence à etapa inicial da educação básica oferecida para crianças de seis a 14 anos, e, em seguida, está a Educação de Jovens e Adultos, com 13%. Por outro lado, as menores percentagens estão no ensino fundamental e médio, ambos com 7%.
Martinha explica que a perspectiva inclusiva da política educacional no Brasil considera que as pessoas com deficiência, transtorno globais do desenvolvimento ou altas capacidades têm o direito de frequentar o sistema de ensino regular e de receber atendimento complementar na educação especial. "A educação especial deixa de ser um sistema que substitui o ensino regular, e apenas se dedica à tarefa de identificar as barreiras no processo educacional e propor maneiras de eliminá-las."
Em abril de 2016, o Ministério da Educação publicou regras para regular o atendimento oferecido pela educação especial, estabelecendo as características e os critérios que devem garantir sua qualidade, tanto no sistema público como no privado. "Um dos critérios exige precisamente que os/as estudantes que recebem este atendimento também devem estar matriculadas/os no ensino regular. Isso faz com que as instituições particulares só complementem a educação comum, e não compitam com ela", observa.
Existem diferentes maneiras de entender como deve ser a oferta de educação para as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades nas políticas educacionais dos países. Você poderia nos apresentar o conceito de educação inclusiva e como ele se relaciona com o direito humano à educação?
A educação inclusiva é um processo que identifica, reconhece e valoriza a diferença. Diz respeito a uma escola que acolhe todas as pessoas, os diversos saberes e culturas, perfis de aprendizagem, variações linguísticas. Uma escola que não é sexista, racista, homofóbica, lesbofóbica, transfóbica. Nesse sentido, a acessibilidade e a participação das pessoas com deficiência em igualdade de direitos representa um dos aspectos da educação inclusiva.
Sempre coexistiram dois sistemas de ensino: o paralelo, com as escolas e classes especiais para as pessoas com deficiência, e o sistema comum. Havia um pequeno número de matriculas de pessoas com deficiência nas escolas comuns, enquanto a maioria das matrículas pertencia às escolas especiais. E essa ainda é uma realidade para boa parte dos países da América Latina e do Caribe.
Quando o Brasil adotou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [em 2008], passa a existir uma diretriz clara que afirma que classe ou escola especial não são uma forma aceitável de garantir o direito à educação. A Convenção combate frontalmente qualquer tipo de segregação com base na condição de deficiência. Do mesmo jeito que não se tolera a segregação racial, não se suporta a segregação com base na condição de deficiência. Os princípios da Convenção, e especificamente o artigo 24 que trata do direito à educação, orientam os países para que superem qualquer forma de segregação ou de discriminação. E existe uma orientação para que os países reordenem seus marcos normativos para atender esses princípios. Todos os países da América Latina e do Caribe aderiram a este documento.
Após ratificar a Convenção, o Brasil decidiu fazer da educação especial uma modalidade complementar ao ensino regular, alterando o seu significado. A educação especial deixa de ser um sistema que substitui o ensino regular, e passa a ser uma modalidade complementar com a atribuição de apenas identificar barreiras no processo de aprendizagem e propor formas de eliminá-las. Considerando que cada pessoa enfrenta um tipo de obstáculo diferente, o foco sai da condição de deficiência e passa para o ambiente, conforme a Convenção orienta. Ou seja, o ambiente da escola é que vai oferecer para essas pessoas condições para o processo de ensino e aprendizagem.
É a educação especial que vai oferecer aulas de História ou Língua Portuguesa? Não, isso será ensinado no sistema comum. A educação especial será responsável por criar um plano de Atendimento Educacional Especializado (AEE) para cada pessoa e verificar que recursos de inclusão são necessários, como leitores de tela ou software de comunicação alternativa, por exemplo. Haverá casos em que o estudante não precisará desse tipo de recursos, mas demandará que a escola seja acessível do ponto de vista arquitetônico. Outro exemplo: se a pessoa com deficiência está fazendo doutorado, pode requerer que a biblioteca da universidade lhe envie os materiais didáticos digitalizados por e-mail, ou seja, em um formato acessível, e aí entra o atendimento especializado.
O financiamento da educação pública inclusiva é um aspecto importante dessa política? Há setores que afirmam que as políticas de inclusão são muito caras ou complexas...
Esse discurso interessa a quem não quer promover a educação inclusiva e quer lucrar com a segregação. Toda vez que alguém fala isso é porque quer vender uma “facilidade” e substituir a escola pública. No Brasil, há um segmento filantrópico que se apropriou historicamente das pessoas com deficiência e de suas famílias, substituindo o serviço público e segregando essas pessoas.
O ponto central da implantação da politica de educação inclusiva no Brasil foi justamente garantir o financiamento público à educação pública. Os dados do Censo Escolar mostram que hoje a inclusão atinge 94% das escolas da rede pública.
A politica de financiamento está estruturada em três eixos. O primeiro é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), que garante a dupla matrícula (recursos adicionais por estudante com deficiência) e dessa maneira se estimula a inclusão nas escolas públicas. Essa possibilidade da segunda matrícula garante os recursos financeiros para esse atendimento complementar, com o qual o sistema de ensino pode oferecer o professor do AEE, o tradutor intérprete de LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), e investir na formação continuada dos/as professores/as do ensino regular para práticas pedagógicas inclusivas.
O segundo eixo é o Plano de Ações Articuladas (PAR), que é programa suplementar de recursos da União destinado a estados e municípios. Cada secretaria faz um planejamento e apresenta suas demandas para promover acessibilidade, como produção de materiais didáticos ou aquisição de recursos tecnológicos. Também existe o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) que destina recursos diretamente para a escola para a aquisição de equipamentos e para a adequação arquitetônica dos edifícios, entre outros.
E, junto a essas ações, também é importante mobilizar a sociedade local - famílias, universidades, movimentos sociais, comunidade educativa - por meio de seminários sobre o tema porque a gente só muda a realidade da escola se houver participação e se a escola for democrática.
Além de criar instruções normativas e fornecer recursos para a ampliação desse atendimento inclusivo nas redes de ensino, você considera que é preciso haver mudanças também nas práticas cotidianas nas escolas? Se sim, por onde devem começar essas mudanças?
Não há dúvida de que a escola precisa ser um organismo vivo que dialogue com o seu tempo. A escola contemporânea é aquela que favorece o protagonismo dos/as estudantes em todos os sentidos. Não é mais uma escola que somente reproduz conteúdos, é uma escola que cria e que discute o significado político das experiências. Para ser inclusiva, a escola precisa passar por uma mudança de concepção e abandonar práticas pedagógicas rígidas e homogeneizantes. Trocá-las por práticas que valorizem os diferentes saberes daquela comunidade, sempre atenta às especificidade dos/as estudantes e dos/as professores. Uma escola boa para pessoas com deficiência tem que ser boa para as pessoas que não tem deficiência. E vice-versa.
A política de educação especial cresceu de forma expressiva na educação básica no Brasil. Por que o avanço é menor em outras etapas como o ensino superior e a educação infantil?
Em nosso país, a oferta da educação infantil ainda alcança uma pequena parte da população nessa faixa etária e, portanto, proporcionalmente atende menos pessoas com deficiência. À medida que ela se tornou uma etapa obrigatória da educação básica, inicia-se uma nova história e por isso percebemos o quanto ainda é preciso fazer para ampliar a oferta da educação pública no país. (Desde 2003, a matrícula de crianças de quatro e cinco anos é obrigatória. Estados e municípios devem se adaptar até o final de 2016 para assegurar matrícula no sistema público para todas as pessoas nessa faixa etária).
O ensino superior é muito pior porque no Brasil as universidades sempre foram elitistas. É claro que houve aumento do acesso às universidades tanto públicas quanto privadas nos últimos anos, e para as pessoas com deficiência também. Contudo, para a maior parte da população brasileira, chegar ao ensino superior ainda não faz parte de seu imaginário. Hoje vivemos essa mudança de paradigma: filhos/as das classes trabalhadoras se percebem como sujeitos de direitos. Observamos o crescimento do número de matrículas de pessoas com deficiência na educação superior a cada ano, mas isso ainda é pouco. Somente 15 universidades federais e 21 institutos federais instituíram cotas para pessoas com deficiência como uma ação de política afirmativa. Além disso, é preciso criar condições para garantir sua participação e aprendizagem.
Há um desafio específico para oferecer educação inclusiva ao público da Educação de Jovens e Adultos?
Essa é uma questão fundamental. Esse público tem sido objeto de interesse do “velho império” da segregação, das instituições filantrópicas que insistem em segregar e que estão utilizando a EJA para receber recursos públicos por meio de convênios com algumas redes de ensino no país. Essas instituições religiosas, filantrópicas ou privadas querem manter as pessoas com deficiência segregadas em uma espécie de asilo para fazer trabalhos manuais ou atividades que tem nada a ver com educação. Por outro lado, ainda assim o número de matrículas no sistema regular tem aumentado porque tem crescido a noção entre essas pessoas e suas famílias de que a educação é um direito.
Apesar desses avanços, ainda são registrados no Brasil e em vários países latino-americanos casos em que estudantes com deficiência ou altas habilidades são recusados de “forma velada” em instituições públicas e particulares, utilizando-se às vezes o argumento de que a escola não está preparada para dar oferecer o que o/a aluno/a precisa. Do seu ponto de vista, quais ações são necessárias para eliminar essas barreiras no acesso à educação regular por parte deste público?
Temos que criminalizar essas instituições e as pessoas que discriminam. No Brasil, o artigo 7 da lei nᵒ 12.764 institui uma sanção tanto para a escola como para o gestor que praticar esse ato discriminatório. E a lei nᵒ 13.146 torna crime essa recusa. Nós temos que incentivar as famílias para que de fato denunciem esses casos porque isso é algo inadmissível. As escolas particulares, por exemplo, são as que mais adotam essa postura de intimidação e desencorajamento diante dessas famílias e desses/as estudantes. Mas é dever da escola se organizar pra atender o aluno ou aluna e garantir seu direito à educação.
Qual a sua opinião sobre a Agenda de Educação 2030 recentemente adotada no que se refere aos compromissos para garantir a educação inclusiva?
O maior desafio é unificar as agendas e enfrentar essas questões de forma conjunta. Acho que, inclusive no Brasil, “hierarquizamos direitos”. Porém, quando falamos em inclusão escolar, estamos nos referindo à desigualdade educacional, tanto em relação ao tempo de escolarização como às condições que se oferecem no campo e na cidade. Estamos falando também das populações quilombola e indígena. Estamos falando das pessoas com deficiência e das lésbicas, travestis, homossexuais, transexuais que são simplesmente banidos/as da escola. Estamos falando de violência e também das juventudes, que são muitas vezes expurgadas do processo educacional. E costumamos tratar tudo isso de forma separada.
Vivemos um momento sombrio da nossa história. Cresce no país o movimento que não quer que a escolar aborde questões de gênero, o movimento em defesa da escola domiciliar. E o que ser quer com tudo isso? Há interesses do sistema privado por trás disso e nós não podemos transigir. Precisamos tratar dessas pautas (de discriminação) sem hierarquizá-las.