Campaña Latinoamericana por el Derecho a la Educación

  • Increase font size
  • Default font size
  • Decrease font size
  • Contato

Site Map

“A educação de qualidade é a que realiza o direito humano à educação, e realiza também os direitos humanos na educação e por meio da educação”

A fala é do pesquisador e integrante da ONG brasileira Ação Educativa, Salomão Ximenes, autor de uma tese de doutorado sobre a qualidade do Ensino na Constituição Federal do Brasil 

11 de novembro de 2014

salomaoO advogado Salomão Ximenes coordena o programa Ação na Justiça da ONG Ação Educativa. Especializado na área do direito humano à educação, ele é autor da tese "Padrão de Qualidade do Ensino: Desafios Institucionais e Bases para a Construção de uma Teoria Jurídica", em que analisa o sentido da previsão constitucional sobre a qualidade da educação no Brasil e estabelece um marco conceitual para o conteúdo normativo desse princípio em relação à educação básica. 

Em entrevista para a CLADE, Ximenes defende a importância de discutir a qualidade num momento de impulso à regulação jurídica da qualidade da educação básica no Brasil e em outros países da América Latina e Caribe. Assim, afirma: “não podemos cair na resposta fácil de estabelecer somente padrões mínimos para a qualidade porque isso reduziria a dimensão ampla do direito à educação”. Veja a seguir a entrevista.  

Sua pesquisa tem como ponto de partida a Constituição brasileira, que estipula um conjunto de princípios a serem realizados na educação escolar, como a garantia de um padrão de qualidade. A que conclusão você chegou sobre o sentido dessa previsão constitucional para a educação básica?

No caso do princípio constitucional do padrão de qualidade do ensino, meu estudo diz que o direito à qualidade na educação básica é o direito à máxima qualidade dentro das condições existentes. Isso já contraria uma perspectiva tradicional do direito, que faria um caminho contrário: para ser direito, seria preciso ser exigível imediatamente e estar bem delimitado. Por essa linha de pensamento, nós só poderíamos considerar como direito aqueles patamares mínimos que a legislação entende como regra, por exemplo, quantidade mínima de estudantes por sala, quantidade mínima de recursos, requisitos mínimos que podem ser imediatamente exigíveis via Judiciário. Essa perspectiva minimalista não dá conta de uma agenda de realização do direito à educação como um direito humano. Então, eu inverto essa lógica para defender que o direito à qualidade deve ser realizado ao máximo, e que o estabelecimento de condições mínimas e básicas para a concreção desse direito deve ser um processo progressivo até a plena realização. 

E qual seria o conteúdo dessa máxima realização a partir de sua pesquisa?

O conteúdo da máxima realização do direito à qualidade vai ser determinado de maneira interdisciplinar, e eu fundamento essa proposição básica a partir da interpretação do direito humano à educação nos instrumentos de direito internacional, que contêm em grande medida as perspectivas da comunidade educativa internacional. O mais legítimo para falar sobre o conteúdo desse máximo é o campo educacional, e não o campo jurídico. Daí a integração e a interdisciplinaridade necessárias, numa perspectiva que foge da ideia do Direito como uma ciência pura e um tecnicismo jurídico autocentrado. 

Qual é, em sua visão, a relação entre uma educação de qualidade e a teoria dos direitos humanos?

A educação de qualidade é a que realiza o direito humano à educação (DHE), realiza os direitos humanos na educação e por meio da educação. Nesse sentido, temos a contribuição do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) da ONU, que determina que o DHE deve ter como características: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade. Nessa perspectiva ampliada, esse é o conteúdo do direito à educação que eu relaciono aos princípios constitucionais do ensino presentes na Constituição Federal. O direito à educação de qualidade tem uma dimensão de determinar ao Estado a adoção de medidas para a realização direta desse direito, por exemplo, investindo recursos para assegurar condições de funcionamento às escolas, mas envolve também posições fundamentais dos direitos humanos, que são proteções contra a ação arbitrária do Estado ou de outras pessoas. Portanto, o direito humano à educação é também aquele que vai assegurar o espaço de liberdade acadêmica de estudantes e professores, o direito à pluralidade de concepções pedagógicas, a possibilidade de que a escola construa com relativa autonomia seus projetos pedagógicos, etc. Esses são direitos que exigem, sem dúvida, a ação direta do Estado, mas vão além dessa dimensão: exigem que ele dê condições de autonomia relativa à escola e aos estudantes.

Nesse sentido, qual a sua opinião sobre as formas e os métodos de avaliação externa padroniza do ensino? Pode-se dizer que esses formatos são insuficientes para garantir e medir a qualidade da educação?

Em geral, tem-se uma perspectiva contrária à minha nas políticas que interpretam a qualidade da educação a partir da estandardização, da adoção de apostilas e da entrada de sistemas privados de ensino. Entendo que essa é uma interpretação da ideia do padrão de qualidade que não se justifica, porque reduz quase absolutamente o espaço para a realização de outros princípios constitucionais, como por exemplo, o princípio da liberdade de ensinar e aprender, o princípio da autonomia relativa das escolas e o da pluralidade, que estão de acordo com a adaptabilidade prevista pelo Comitê DESC. O respeito aos direitos humanos no processo educacional também é fundamental para se entender e se realizar uma educação de qualidade. Ou seja, não basta promover determinadas habilidades e competências valorizadas pelo mercado e por exames padronizados, mas a realização do DHE deve também permitir a realização dos demais direitos humanos na educação, por exemplo, o direito à participação e à cidadania. Além disso, a realização dos direitos humanos por meio da educação deve ser alcançada na medida em que a escola e o sistema educacional promovam uma cultura de direitos humanos, de combate às desigualdades e às discriminações estruturais, como o racismo, a dominação de gênero e a homofobia. Aqui relaciono o direito humano à educação com o princípio da igualdade, que envolve, para a educação, a igualdade de oportunidades e a igualdade de base. Na educação básica, é a igualdade de base que deve prevalecer, já que nesta etapa o direito humano à educação é regido pelo princípio da universalidade. Isso envolve a busca pela eliminação das desigualdades sociais por meio da educação, através da promoção de políticas públicas que assegurem condições básicas de qualidade a todos e que fortaleçam os segmentos explorados ou marginalizados. Uma escola que tem um bom resultado na avaliação externa, mas promove segmentação e desigualdade, está interpretando a qualidade de maneira restrita quando sobrevaloriza aquela prova padronizada.No seu estudo, você indica dimensões para a avaliação do cumprimento de uma educação de qualidade. Quais são elas?

Busquei na literatura e em documentos internacionais fatores relacionados à melhoria da qualidade do direito humano à educação. Sistematizei essas informações em dimensões da realização do direito humano à educação dotadas de algum nível de proteção jurídica, que são sete: a dimensão dos estudantes; ambiente escolar; condições de infraestrutura e insumos básicos; conteúdos; processos educacionais relevantes; resultados e financiamento público. Hoje, no entanto, há uma tendência de definir as dimensões jurídicas da educação de qualidade unicamente como padrões mínimos. A Constituição brasileira de 1988 (art. 206, VII) e os tratados internacionais não autorizam essa interpretação. Neles o direito à educação de qualidade é o direito a exercer a máxima qualidade, consideradas todas as sete dimensões. Estabelecer padrões mínimos pode ser importante em contextos nos quais sequer estes são cumpridos, mas o direito à educação, o direito de exigir uma educação de qualidade vai muito além desse ponto.  Nesse sentido, eu defendo no estudo que a realização do direito humano à educação de qualidade envolve a realização dessas sete dimensões de forma integrada e de maneira que todas contribuam com o direito humano à educação de qualidade nessa perspectiva maximalista, ou seja, que todas sejam realizadas ao máximo. É muito comum se afirmar que a legislação brasileira não protege, não estabelece qual o conteúdo da educação de qualidade, e que seria preciso que tivéssemos uma norma mais objetiva. Isso não é verdade. Você encontra muita definição de cada uma dessas dimensões no conteúdo da legislação brasileira. O que acontece é que algumas dessas dimensões são mais detalhadas, e outras menos, em termos de conteúdo jurídico. É verdade que seria útil integrar essas dimensões amplas em um documento jurídico com força normativa, desde que sejamos capazes de fugir à tentação minimalista e à hegemonização dos resultados em testes padronizados. 

Por que o financiamento é uma dimensão importante da realização de uma educação de qualidade, e nesse sentido quais seriam os impactos da privatização da educação sobre esse padrão qualitativo?

Optei por incluir o financiamento da educação como dimensão da qualidade pelo contexto específico do debate jurídico sobre esse tema no Brasil atualmente, que se relacionada à definição do custo aluno qualidade. Este, impulsionado pelo trabalho da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, expressa uma formulação original que  aproxima a questão do financiamento à qualidade. Na verdade, submete a lógica do financiamento à garantia de condições para a realização progressiva da qualidade socialmente exigida.

Quanto à segunda pergunta, estou convencido de que a única forma de realização do direito humano à educação é por meio de um sistema público consistente e igualitário, em que o sistema privado seja colocado como subsidiário, como uma opção efetiva das famílias, ou dos estudantes, e não na perspectiva colocada hoje na maioria dos países da América Latina e no Brasil, em que o sistema privado se justifica pela segmentação social. Nesse sentido, o sistema em si viola os direitos humanos e o princípio da igualdade. Além disso, existe hoje um processo de entrada da lógica privada e do lucro na educação pública. Isso traz riscos para a realização do direito humano à educação, quando canaliza recursos públicos para essas empresas, que vendem materiais apostilados, padronizados, além de sistemas privados de gestão, para as escolas públicas. Esses materiais e sistemas são inseridos com pouquíssima ou nenhuma participação da comunidade escolar do município ou da escola, impondo regimes padronizados de educação, que por um lado, tendem a reduzir o conteúdo da educação a conteúdos mínimos e esvaziam outras dimensões essenciais do direito humano à educação (como liberdade, pluralismo, autonomia relativa das escolas, gestão escolar democrática nas escolas, etc.). Outro problema que existe hoje é uma generalização da formação dos novos profissionais da educação básica em instituições privadas, oligopolizadas e de baixa qualidade, que se vendem inclusive pelo baixo custo. 

Qual o limite da atuação do sistema de Justiça em relação ao sistema educacional?

No Brasil hoje está dado que é possível exigir o direito à educação na Justiça. A questão é como exigir para tornar efetiva a decisão judicial, e qual o limite do controle judicial sobre as políticas educacionais. Porque há situações que podem ser entendidas como judicialização negativa, que é aquela realizada sem diálogo com o campo educacional ou que se limita a repetir determinados padrões decisórios sem maiores impactos na realização efetiva do DHE. Há também a possibilidade de que a judicialização jogue ainda mais peso sobre a dimensão dos resultados, causando distorções no sistema educacional, em relação à qualidade educativa. Questões mais objetivas e menos relacionadas ao campo pedagógico são mais adequadas para o controle judicial. Eu recomendaria uma atuação do Judiciário no sentido de cobrar que se cumpra a garantia de infraestrutura adequada nas escolas, que todas as escolas tenham espaços físicos adequados, número suficiente de professores, que se cumpram as determinações legais relacionadas à valorização dos trabalhadores da educação, as condições para a inclusão de estudantes com deficiência, a fiscalização da aplicação dos recursos públicos destinados à educação, além, é claro, da exigência de disponibilidade de vagas acessíveis e adequadas para todos. 

Sobre este último ponto, nossa experiência na Ação Educativa vem demonstrando que mais efetiva que a atuação individualizada é a promoção de ações judiciais de caráter coletivo, que levem o Judiciário a ampliar sua interlocução com o campo educacional – através da realização Audiências Públicas, por exemplo - e a fortalecer a agenda de monitoramento da realização do direito à educação. O objetivo deve ser obter decisões judiciais que exijam do Estado a eliminação das omissões presentes nas políticas públicas, através da apresentação de planos específicos de ampliação e qualificação de seus sistemas educacionais, que possam ser acompanhados, em sua execução, pela sociedade civil organizada.