“O direito à educação não pode caminhar sozinho”
Informe lançado pela Campanha Mundial pela Educação revela descaso global com a educação e o cuidado na primeira infância. Relatora sobre os direitos da infância da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Rosa María Ortíz, fala sobre os desafios para a realização desse direito e os instrumentos de justiciabilidade que podem ajudar a garanti-lo nas Américas
A educação e o cuidado na primeira infância - especialmente quando se trata de crianças mais vulneráveis e desfavorecidas- é tema do primeiro entre os seis objetivos de Educação para Todos e Todas (EPT), acordados por 164 governos em durante o Fórum Mundial de Educação em Dakar, em 2000, quando também se estipulou o ano de 2015 como data-limite para seu cumprimento. Já caminhamos para o fim de 2012 e, no entanto, em todo o mundo, ainda existem 200 milhões de crianças de 0 a 5 anos sem acesso à educação e ao cuidado, como mostra o relatório “Direitos desde o princípio: educação e cuidado na primeira infância”, produzido pela Campanha Mundial pela Educação (CME).
A educação de crianças de 0 a 8 anos [fase entendida mundialmente como “primeira infância”] é compreendida como um direito individual em diversos tratados regionais e internacionais. Porém, apenas metade dos países do planeta tem programas oficiais destinados às crianças de até 3 anos de idade, e muitos deles só atingem uma minoria do público. O gasto médio com políticas relacionadas à educação infantil em todo o mundo varia entre 0,5% do PIB na Europa Central e Oriental e uma porcentagem próxima a 0, no oeste da Ásia e na África Subsaariana. Essas são algumas das conclusões do estudo da CME, que foi produzido com base no exame de planos e orçamentos governamentais.
Segundo relator do informe, Vernor Muñoz, jurista que também é ex-relator especial da ONU sobre o Direito à Educação, falta um corpo normativo concreto nos países, que estabeleça obrigações dos Estados com os direitos da primeira infância, o que leva a que não haja financiamento para essa área, especialmente no que diz respeito a crianças de até 3 anos de idade.
Para tratar o problema do ponto de vista específico de América Latina e Caribe, esteve presente no lançamento oficial da publicação no Brasil [22/08/2012] a Relatora sobre os direitos da infância da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e ex-integrante do Comitê de Direitos da Criança das Nações Unidas, Rosa Maria Ortiz. A especialista concedeu uma entrevista especial à Caros Amigos, em que comenta o conteúdo do informe e fala sobre os instrumentos internacionais de justiciabilidade do direito à educação na primeira infância atualmente disponíveis. Confira a seguir.
Quais são os principais desafios para a realização do direito à educação na primeira infância?
O direito à educação é um dos direitos mais reconhecidos, e mesmo demandáveis juridicamente, em sistemas internacionais e nacionais. Já os direitos da infância precisam ainda caminhar um pouco, para que o reconhecimento do direito à educação nessa faixa de idade seja pleno. Entretanto, facilita o fato de que o direito à educação esteja absolutamente reconhecido e aceito. Falta trabalhar pelo reconhecimento de que o setor da população de 0 a 8 anos também tem esse direito, que deve ser respeitado e garantido.
O informe que a CME produziu mostra a relação entre a falta de acesso à educação na primeira infância e outros fatores, como nutrição, saúde, proteção e condição social. É possível garantir o direito à educação para todos e todas, sem que se considere essa integralidade?
O direito à educação na primeira infância não pode ser visto de uma maneira isolada, sem que se leve em conta os demais atores que intervêm na vida dessas crianças. Ao reconhecer-se a criança como um sujeito de direitos, também se reconhece esse indivíduo em relação às necessidades condizentes com sua idade. É importantíssimo que quem trabalha pela educação na primeira infância identifique os outros atores envolvidos com essas particularidades e ambos trabalhem juntos. São exemplos: o governo local, a saúde, o Ministério de Políticas Sociais e o da Cultura, entre outros setores. O trabalho com educação na primeira infância deve se alimentar e também se retroalimentar desses outros atores. Apenas assim se poderá avançar na atenção integral a que as crianças têm direito.
Colaboraria para isso a criação de uma mesa ou comissão da primeira infância, em que esses atores pudessem identificar suas responsabilidades, assegurando um enfoque do tema sob uma perspectiva de direitos. Eu gostaria que se assegurasse o reconhecimento do direito à educação na primeira infância como parte dos sistemas de proteção integral dos direitos da infância e da adolescência em cada país, em nível dos conselhos nacionais, estaduais e municipais. Também gostaria que esse tema fizesse parte dos planos nacionais, estaduais e municipais e, ainda, tivesse seu próprio plano de intervenção e incidência. Esse direito não pode caminhar sozinho, sem fazer parte de um circuito do sistema de proteção integral.
Qual o caminho a percorrer para fazer uma denúncia de violação de direitos perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos?
A entrada se dá pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, instância que determina se há ou não violação de um direito. A comissão não faz isso sozinha, mas sim consultando tanto o proponente da denúncia, quanto o Estado. Ao receber informações de ambas as partes, a Comissão busca também informação de outras fontes, determinando assim se houve ou não violação de um ou vários direitos. Assim que realiza esse procedimento, a Comissão acompanha um processo entre a vítima e o Estado para colaborar com a busca por uma maneira adequada de reparação à vítima, ou às vítimas, e para que também sejam tomadas medidas de não repetição da violação. Para isso, a Comissão faz recomendações ao Estado. Os casos em que o Estado não consiga cumprir suficientemente as recomendações da Comissão são enviados à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esse mecanismo tem se mostrado útil à compensação das vítimas, além de colaborar para que o Estado melhore seus próprios mecanismos de garantia de direitos, beneficiando mais pessoas.
Quais são as principais linhas de ação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos na defesa do direito à educação e ao cuidado na primeira infância?
Não são feitas atualmente muitas solicitações sobre esse direito à Comissão, por parte das organizações da sociedade civil. Essa falta de solicitações faz com que o próprio Sistema não desenvolva ferramentas e garantias. Se uma pessoa alimenta o sistema com a petição de determinada medida, o sistema pode produzir ferramentas e possibilidades para que essa solicitação retorne ao país com a produção de algum efeito.
Que instrumentos se podem utilizar para a realização de uma denúncia de casos de violação do direito à educação e ao cuidado na primeira infância diante da Comissão?
Há vários instrumentos que possibilitam o diálogo entre a Comissão e a sociedade civil. Um deles é a audiência pública, em que a Comissão escuta o que a sociedade civil quer dizer sobre as necessidades existentes em determinada matéria, na região, e outro é um caso concreto de violação de direito, que pode ser levado inicialmente à justiça em nível nacional, e depois ao Sistema Interamericano. Isso leva tempo, mas, se existem as condições para essa solicitação, vale a pena porque, dessa maneira, cria-se jurisprudência sobre o tema. Também podem ser usados como jurisprudências casos em que, indiretamente, o direito è educação foi demandado judicialmente [pelo fato de esse direito estar abarcado pelos direitos econômicos, sociais e culturais], e produziu sentenças da Corte e recomendações da Comissão.
Outra ferramenta que pode ser utilizada é o artigo 41 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José), que autoriza a Comissão a pedir informações a um Estado determinado, sobre algum aspecto de preocupação. A Relatoria sobre os Direitos da Infância pode redigir um pedido desse tipo, mas para se valer desse instrumento precisa de uma aliança estratégica com setores da sociedade e de informação que lhe permita fazer perguntas ao Estado com relação à legislação, implementação do direito, ou algum outro aspecto determinado. Outro instrumento existente é a Opinião Consultiva, que pode ser feita por pedido da Comissão, da sociedade civil, ou de um Estado da região, quando se precise de mais especificação sobre o nível de alcance de determinado direito. Uma pergunta que poderia ser respondida dessa maneira é: o direito à educação atende ao setor de 0 a 8 anos de idade? Por fim, existem as medidas cautelares. Mas, elas somente podem ser propostas nos casos em que há urgência, ou um dano reparável, entre outros requisitos.
O informe da CME indica que faltam indicadores confiáveis sobre o grau de cobertura desse direito no mundo. É possível garantir uma educação para todas as pessoas, com respeito à diversidade e sem discriminação, sem indicadores confiáveis e transparentes?
Esses são os desafios dos direitos econômicos, sociais e culturais. Ainda não está claro como eles podem ser judiciados, especialmente quando dizem respeito a grupos tão grandes. É mais fácil quando se trata de um indivíduo concreto, cujo direito foi violado. Por isso, os direitos econômicos, sociais e culturais, comparativamente aos civis e políticos, têm sido menos ajuizados. Agora a Comissão passa por um momento em que está encarando o problema, redigindo indicadores para a avaliação do cumprimento dos direitos humanos por países da região. Estamos buscando os mecanismos adequados.
Você poderia dar exemplo de casos exitosos quanto ao uso de instrumentos de defesa dos direitos humanos no sistema interamericano?
Houve um caso em que muitos adolescentes haviam sido condenados à prisão perpétua na Argentina, por terem cometido crimes graves. No processo da Comissão, durante vários anos, não se havia conseguido solução para o problema. Então, o caso foi mandado à Corte. Porém, casualmente, dois dias atrás, o problema foi solucionado, e os jovens que tinham sido sentenciados à prisão perpétua terão uma condenação diferente, devido ao reconhecimento de que a antiga sentença era inconstitucional. Aí se demonstra a utilidade do sistema da Comissão, por mais que seu processo leve vários anos. Lamentavelmente, inclusive, antes da solução do caso, um dos adolescentes se suicidou enquanto estava na prisão. Que esse sacrifício não tenha sido em vão e que outros adolescentes não tenham que passar pela mesma coisa.
No Brasil, o caso da Lei Maria da Penha é outro exemplo de como o sistema pode ajudar um Estado a mudar sua legislação. A Lei foi resultado de uma condenação decorrente de uma denúncia de violência contra mulheres no país. Outro exemplo foi o da Lei de Anistia do Uruguai que, passadas décadas do fim da Ditadura Militar no país, ainda continua existindo. Já foram feitos dois referendos, e a própria sociedade civil pediu que não fosse modificada essa Lei. Portanto, não se podiam instar na justiça os militares que haviam cometido graves violações de direitos humanos. Também não se podiam julgar outros delitos, como o desaparecimento de pessoas durante a Ditadura, nem se buscar esses desaparecidos. Porém, chegou à Comissão, e depois à Corte, uma denúncia de crimes cometidos pela Ditadura Uruguaia, feita pelo poeta argentino Juan Gelman. O caso produziu uma sentença contra o Uruguai. Graças a essa sentença, que é hierarquicamente superior à lei nacional, atualmente vêm sendo propostas ações judiciais contra os militares, e estão sendo encontrados os restos mortais de pessoas desaparecidas. Esse é um exemplo de como às vezes é a própria sociedade que rechaça mudanças. São cometidas violações de direitos, não somente por irresponsabilidade do Estado, mas também pela própria sociedade. Por isso, esses sistemas internacionais são necessários para que se mantenha cada coisa em seu lugar.
Qual é o papel dos meios de comunicação na conscientização da sociedade sobre a importância do direito à educação e ao cuidado na primeira infância?
Os meios de comunicação locais têm um papel importante, dado o tamanho de sua influência sobre a população. Essa influência chega a tal grau, que é como se um tema não existisse se não está na mídia. Como estamos falando de transformações, é evidente, portanto, o impacto que os meios de comunicação têm à compreensão da realidade. Sabemos também do mau impacto produzido por esses meios, sejam massivos ou alternativos, quando impedem que a opinião pública seja bem informada. Os meios deveriam dar elementos à opinião pública para que ela possa compreender a própria realidade, a origem de seus problemas e, também, as soluções e as responsabilidades dos atores envolvidos, bem como seu próprio papel diante dessas dificuldades. Portanto, os meios de comunicação precisam se aproximar das pessoas, segundo uma mensagem clara de que os meninos e meninas de 0 a 8 anos devem ter garantidos pelo Estado todos os serviços adequados e necessários a que se cumpra o seu direito à educação.